A Memória Perdida de Ipanema
Mauro M. de Azeredo
Conheci Ipanema nos anos cinquenta e sessenta, quando ainda era um bairro de muitas casas e poucos edifícios. Excetuados os fins de semana, havia escasso movimento na Vieira Souto, ladeada por casas e prédios do gabarito de quatro andares.Ao contrário de Copacabana, a praia não foi modificada.
Andar à tardinha ao longo da calçada que a costeava, seria muita vez caminhada solitária, na companhia das dunas e dos ventos.Na Visconde de Pirajá, com seus trilhos de bonde, e um que outro edifício, as casas se sucediam, com modestos jardins e largos quintais.
Naquela artéria, apareciam as lojas, armazéns e os cinemas. Existiam os de luxo, como o Astória, próximo ao Jardim de Alá e Bar Vinte, e os populares, a exemplo do Pirajá e do Cine Ipanema. Eram os chamados ‘poeiras’.As ruas tranquilas do bairro podiam ser percorridas a pé, a qualquer hora do dia e da noite.
Muita vez retornei ao posto seis, onde morava, caminhando, em torno da meia-noite, por ermas calçadas e até nos paralelepípedos da deserta Visconde de Pirajá, sem nunca ter sido disturbado em meu solitário regresso à Copacabana.
Como bairro de classe média, Ipanema teria os seus bares e botequins, redutos boêmios e até ruidosos em fins de semana. No entanto, as luzes nas casas se recolhiam, pelas ruas e travessas em horas ajuizadas, sobretudo se a manhã seguinte fosse dia de trabalho.
Já nos sábados e domingos, havia mais gente na rua e na praia, espalhada pelos bares, restaurantes, filas de cinema e em algumas esquinas.Com o moroso transporte dos bondes e dos próprios ônibus, menor número de carros, Ipanema seria menos movimentada e bastante mais sossegada do que Copacabana.
Naqueles tempos em que as comunicações viárias ainda se esgueiravam ao longo das montanhas sem adentrá-las, Ipanema e Leblon se afiguravam ilhas pouco visitadas por gente de fora.Frequentá-la como fazia, seria encontrar um vasto e plácido bairro, em que os imensos quarteirões se sucediam em espaços serenos e pouco povoados, com moças e rapazes como que criteriosa e esparsamente distribuídos por calçadas às vezes drummondianamente sonolentas.Por que hoje me acodem tais reminiscências ?
Andando pelas afobadas e atopetadas calçadas da descaracterizada Ipanema de hoje, me lembrei da iniciativa de algum prefeito de passado não-longínquo, que buscou preservar o inaferrável, que é trazer de volta ao ambiente atual, de modernosa aglomeração, a alma, as pessoas e os costumes de época soterrada por supermercados, lojas, bancos e muita edificações.Pois a dita autoridade, de mim desconhecida, com louvável propósito mandou colocar, nos sítios adequados das calçadas, placas de bronze.
Assim, caminhando ao longo da Pirajá, alternando os lados direito e esquerdo conforme a localização, toparia com os dizeres: aqui funcionou o cinema Astória, aqui o bar Zeppelin, aqui a sorveteria Morais, aqui morou João Saldanha, aqui o cinema Pirajá, aqui prédio traçado por Oscar Niemeyer, aqui o cinema Ipanema...
Creio que o prefeito saudosista não se terá limitado a essas singelas,porém verazes homenagens. Outras placas terá ordenado fixar na pedra das calçadas.Os tempos mudaram decerto. E somente os desavisados hão de divergir e rebelar-se contra esse princípio que nos rege a todos.Só me pergunto, ao procurar em vão as placas que lá estavam não faz muito, por que elas se foram, deixando apenas nas calçadas as cicatrizes da sua não-presença.Elas se foram, em silêncio e na calada da noite, arrancadas por mãos ignaras, no encalço de um pífio ganho.
Enquanto isso, o poder público assiste impotente ao estropiamento não só daquilo que foi, mas também das singelas marcas que se propunham estender a vicária vida das memórias de Ipanema.
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