DEPOIMENTO






Meu Vizinho: o Morador de Rua


Angela Moura




Abro a janela e, antes do sol, dou de cara com um morador de rua.
Um só? Não. Um montão deles.


Não sei o porquê, lembrei minha mãe:
- Seu vizinho, pai de todos, fura bolo e mata piolho...


O mais jovem, com voz fanha, faz uma saudação:
- Dormiu bem, tia?
Devolvo um sorriso de bom dia.
Penso que deveria ser solidária e dizer: - Meu cão está cheio de pulgas e me coçei a noite toda... Tive uma dor de cabeça de rachar. Não preguei os olhos... Ou qualquer coisa esperta.

A visão daquela vida miserável dá um nó em meu estômago.
Apesar de tudo, são pessoas light. Levam apenas uma mala, com toda sua vida.
Imagina eu, de salto, com um trem de malas amarradas umas às outras, correndo pela rua...

Enquanto dou asas à imaginação, brancos, negros e mulatos, de 15 a 60 anos, desfilam em minha frente.
Entre eles, uma grávida de 8 para 9 meses, com capricho, varre a calçada.

Os maus hábitos deixam vestígios no meio fio, mais ou menos escondidos pela cortina de carros estacionados.
Bate um cheiro forte. Alguém comeu repolho no jantar...

Como toda vizinhança que se preza, acabo sabendo a estória de cada um.
A maioria saiu de casa, depois de brigas por cachaça ou droga, e acampou em uma rua próxima.
As famílias não os abandonaram de vez. Para tranquilizarem a consciência, continuam pagando abrigos, em troca de banho, roupa e comida. Afinal, quem quer colocar um mendigo no álbum de família?

Morador de rua sobrevive. Arruma bicos para o pão e o vício.
O melhor bicudo é o flanelinha, que arruma uns $ 80 por dia útil, com mais trocados nos domingos de sol e praia. O ponto é disputado no grito. Todo mundo quer. Ninguém esquenta: dá para dividir a grana entre eles, na proporção de tamanho e força.

Mas, a maré, às vezes, está mais para jacaré - só dá para olhar de longe.
Chega, sem aviso, uma chuva daquelas, que lava a alma e os restos. Com boeiros sempre entupidos, a rua vira lagoa.
É um corre-corre danado.
Alguém esqueceu a perna-de-pau e uns bagulhos...

Passado um tempo, voltam todos para marcarem ponto.
Tempos difíceis.

O frio está chegando. O mais idoso tem tossido à noite toda.
- Será que um xarope ajudaria?... Aquele cobertor velho que nem uso mais...

A grávida teve o filho. Até hoje, não sei se um menino ou menina. Parecia que ia ser gigante.
Outro dia, toda aprumadinha, com a criança no colo, veio visitar o marido. Com pressa, se mandou para outra freguesia. E não voltou.

Numa madrugada, surge o novo e poderoso choque de ordem.
- Nossa! Parabéns!
Até tranquei minha janela.
Recolheram-se ou foram recolhidos. A calçada ficou vazia por um bom tempo. LIMPINHA!

Cruzei na rua com meus vizinhos e nem reconheci. Banho tomado e bem vestidos, bonitos que nem laranja de amostra, desfilavam simpaticamente pelas redondezas.
- Hummm! Perfume francês?...

Desconheço a qualidade dos programas assistenciais. Acho que asilos são iguais a Hospital Público. Deve-se ter que rezar para conseguir sair correndo de lá...

Ao contrário do que dizem, não vieram de longe. Os meus vizinhos são cariocas de Ipanema e, apesar da falta de educação, que ninguém se importou em dar (?!), amam o bairro, assim como eu e você.
Vida de morador de rua é dura, gente! Mas, esses anti-heróis modernos sempre voltam.
- Daqui não saio... ...ninguém me tira...
Fazer o quê?




NOTA:
A população de rua está aumentando de forma alarmante. Não basta retirá-la das ruas.
As autoridades precisam tomar providências urgentes para a questão, estimulando a parceria do setor privado, estabelecimentos de ensino e da sociedade, para que todos, sem distinção, possam viver com o mínimo de dignidade.
É necessária vontade política para reverter esse quadro progressivo, criando novos meios de assistência aos mais necessitados, que (sobre)vivem, apesar do descaso alheio.



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Sem incoerência: toda moeda tem duas faces.


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