ARPOADOR


O Arpoador é como a luz no coração dos cariocas

  • ‘Arpex’ é muito mais que uma praia: inspira e faz feliz

LUDMILLA DE LIMA(EMAIL·


Pura felicidade. O visual perfeito do Arpoador num dia de verão: frequentadores aproveitando o sol na pedra e banhistas se esbaldando no mar azul Caribe
Foto: Marcelo Piu / O Globo
Pura felicidade. O visual perfeito do Arpoador num dia de verão: frequentadores aproveitando o sol na pedra e banhistas se esbaldando no mar azul Caribe Marcelo Piu / O Globo
RIO — Há controvérsias sobre quem inventou o aplauso para o pôr do sol, quem se arriscou primeiro a ficar em pé sobre uma prancha de pegar jacaré ou ainda sobre como era o biquíni da menina que ousou desfilar a bordo de um no Rio. Um detalhe, porém, é inquestionável: tudo isso fez sua estreia no mesmo lugar, tornando a pequena faixa de areia uma plataforma de lançamento de modas e invenções tão típicas do carioca. Embora seja parte do famoso contorno da Praia de Ipanema, o Arpoador virou quase uma república independente, polo produtor de inesgotáveis novidades.
chama, que se mantém acesa há pelo menos 70 anos, ajuda a explicar por que esse cantinho de areia e pedras e com um pôr do sol arrebatador enche o coração dos cariocas de alegria. Elaborada pela agência Quê Comunicação e pela Casa 7 Núcleo de Pesquisa com exclusividade para O GLOBO, a pesquisa “O carioca e a felicidade” perguntou aos entrevistados os lugares que mais inspiram felicidade no Rio. Praias (em geral) aparecem em primeiro, seguidas pelo Cristo Redentor. O Arpoador vem logo atrás, com 22%, na frente do Pão de Açúcar.
Nos anos 40, o Arpoador não tinha metade do público de hoje, mas já era um pedaço cosmopolita, muito frequentado por estrangeiros e “moderninhos” da época. Foi lá que nasceu parte da cultura praiana do Rio. Galã do Cinema Novo e lenda do Arpoador, Arduino Colasanti foi um dos pioneiros no surfe ao ficar em pé numa prancha de madeira.
— Meu primeiro contato com o Arpoador foi logo depois de chegar ao Rio (vindo da Itália), em 48. Era uma praia frequentada por muitos grupos de estrangeiros e meu pai me levou e me deixou lá. Eu era bem garoto, e ele deu dinheiro para o salva vidas ficar de olho em mim, e fiquei lá. Comecei logo a pegar jacaré na época e a mergulhar lá atrás das pedras nos dias de mar manso. Arranjei uma namorada lá, a Ira (Etz), e eu fui o primeiro a fazer uma prancha tipo havaiana, grande e longa, com fibra de vidro em cima. Eu pegava onda em pé nela — recorda Arduíno.
O ritual de aplaudir o pôr do sol surgiu de forma natural, lembra Arduino:
— Foi no início dos anos 60. Eu estava na primeira turma. Foi um dia esplendoroso, acho que era verão, porque o sol se pôs perto das Ilhas Tijuca. Aplaudimos espontaneamente.
No Arpoador, a democracia das areias não é utopia: são 500 metros de extensão com todo mundo junto e misturado. Banhistas que chegam de metrô ou ônibus, vizinhos que descem o Morro do Cantagalo, surfistas e adeptos do stand up paddle, intelectuais que se cansaram do Posto 9, frequentadores da época de Arduino e nomes milionários: todos se encontram, seja no mar, nas pedras, na areia, no calçadão, na Praia do Diabo, no Parque Garota de Ipanema, nas mesas do Azul Marinho.
— Na década de 50, as mulheres quando queriam usar biquíni iam para o Arpoador. Em outros lugares não era socialmente aceito. Para o Arpoador iam as meninas avançadas. O Arpoador sempre teve esse espírito e muitos estrangeiros — explica a jornalista Márcia Disitzer, autora do recém-lançado livro “Um mergulho no Rio — 100 anos de moda e comportamento na praia carioca”.
A artista plástica Ira Etz, musa do Arpoador nos anos 50 e 60 e que continua fiel à praia, conta que lá é o eterno lugar para ir descalça, encontrar os amigos e saber da programação. Muita coisa mudou naquele pedaço da orla que, antes de os banhistas chegarem, era ponto de arpoar baleias — por isso o nome. Mas o clima vanguarda e familiar permanece, conta a produtora Daniela Tolstoï.
— Lá realmente fica a felicidade. A gente encontra amigos e sabe o que vai acontecer mais tarde. Às vezes, a festa acontece na praia. Já saí da praia meia-noite, uma da manhã.
Ela migrou para o Arpoador com a turma do artista plástico Ernesto Neto à procura de uma certa espontaneidade perdida com a badalação do Posto 9. Essa galera festeira já tornou célebre o réveillon naquele canto. Neto é só poesia — concreta, com poucas vírgulas — sobre o seu “namoro” com o Arpex: “Churrasco pra esquentá. Música pra dançar arte surfe jacaré maré baixa maré onde pretos brancos pardos amarelos vermelhos azuis e alaranjados, rico e pé rapado, mistura miscigenada, é rebuliço festa, cultura e escultura”.
Onde Cazuza vagou na lua deserta, e o Circo Voador pousou pela primeira vez, há uma mística que encanta os poetas:
— O Arpoador é onde afogo minhas mágoas, vivo minhas alegrias e comemoro minhas vitórias — declara o músico Rogê, autor de “Arpex”, música que escreveu aos 15 anos.
O Arpex não dorme nunca. Com a iluminação de refletores, à noite tem surfe, stand up, pesca, mergulho e gente bonita. Belas garotas sempre foram atraídas para o Arpoador. Miriam Etz fez história ao usar pela primeira vez no Rio um duas-peças que deixava o umbigo à mostra. O ano que ficou para a história é o de 1948. Ira Etz seguiu os passos da mãe:
— O Arpoador é a minha praia. Conheço cada pedra. Dava volta no Pontão, jogava frescobol, pegava jacaré — diz a musa, que hoje flerta com o stand up e gosta de tomar água de coco na praia.
Professor de surfe e referência no Arpex, Jean Carlos diz que nenhum dia é igual:
— Hoje o Caribe é aqui — afirmava Jean, do seu “escritório”, na semana passada, diante de um mar transparente.
Sobre a pedra que fica dentro d´água, e não tem nome, bate ponto uma turma que se auto batizou de Os Pinguins da Pedra, que já reúne três gerações. Eles revelam que o espírito do Arpoador está na intimidade. É o lugar onde ainda é possível telefonar para o barraqueiro para saber quem está na praia, como faz o “consultor de carioquices” William Vorhees, chegar descalço e só de sunga e dar um mergulho das pedras antes de começar para valer o dia, hábito de Rogê, e onde o “pinguim” Abel Pinto tem certeza que vai achar um amigo. No Arpoador, resume o aposentado, ainda encontra-se a felicidade.





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