CANTAGALO

Reportagem:

O Cantagalo é um inferno pacificado

Por Marco Vaza, no Rio de Janeiro


"17, 18, 19, 20..." Na base do morro, numa das entradas da favela, um soldado armado da Polícia Militar (PM) conta as balas de um dos carregadores da metralhadora. A PM patrulha a íngreme entrada do morro enquanto dezenas de pessoas entram e saem. Até ao topo, serão algumas centenas de metros de chão empedrado e inclinado a cerca de 40 graus. A maioria aventura-se a pé, quem pode paga dois reais para subir de moto num dos dez "moto táxi" que estão de serviço. Os condutores conhecem todas as curvas e buracos. Tirando o soldado que conta balas, tudo parece pacífico no morro.

O mais difícil é fazer com que as pessoas confiem na polícia (Ricardo Moraes/Reuters)
Bem-vindos ao Cantagalo/Pavão-Pavãozinho, uma das últimas favelas do Rio de Janeiro a ser ocupada pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). O nome explica-se a si próprio, são batalhões de soldados da PM que ocupam favelas, expulsam o narcotráfico armado e se estabelecem em permanência. No Cantagalo, são 180 soldados, mais os oficiais, para 11 mil habitantes. A acção é complementada com programas sociais e de requalificação urbana - no Cantagalo há algumas barracas a dar lugar a prédios.O capitão da unidade é Leandro Nogueira, 32 anos e polícia há nove anos, ele que antes era professor de Geografia. "Primeiro é um trabalho de ocupação. Visamos controlar o território e expulsar o tráfico armado, garantir os direitos das pessoas. Vamos tentar mais à frente o contacto com a comunidade, ainda estamos num processo de consciencialização e apreensão de armas e drogas", explica o capitão da UPP do Cantagalo, no gabinete no topo do morro.As UPP, criadas em Novembro de 2008 pela Secretaria Estadual de Segurança Pública do Rio de Janeiro, são unidades compostas, quase em exclusivo, por agentes vindos directamente da academia, onde tiveram um módulo em "polícia comunitária". Para lá do Cantagalo, existem UPP no morro Dona Marta, Cidade de Deus, Bantan, Babilónia, Chapéu Mangueira, Morro dos Cabritos e Ladeira dos Tabajaras.Há alguns meses, naquela mesma entrada, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE), celebrizado para o mundo através do filme Tropa de Elite, avançou para o morro com todo o aparato. Houve confrontos, troca de tiros, prisões e apreensões. "No primeira dia, atearam fogo num ônibus", recorda o capitão Nogueira. No início da ocupação as entradas e saídas eram controladas de forma muito rigorosa e, ainda no primeiro dia, deu-se a apreensão de uma espingarda desmontada na mochila de uma rapariga de 14 anos em uniforme da escola. O mais difícil, diz o militar, é fazer com que as pessoas confiem na polícia. Um dos incidentes mais graves desde a inauguração da UPP, a 23 de Dezembro, foi quando prenderam um homem e as pessoas "a mando do tráfico" fecharam uma rua, queimaram um colchão e atiraram pedras e garrafas à polícia.
O capitão Nogueira não mora no Cantagalo - faz 60 quilómetros de casa para o trabalho -, mas nas ruas é reconhecido por quase todos. Ouve muitas reclamações. Como as dos vendedores, que tinham ordem para desmontar as barracas mas sem sítio para se instalarem. Nogueira escuta, conversa e continua. Mais à frente, um homem em tronco nu sentado num caixote queixa-se de que foi abordado pela polícia sem justificação. "Você era da paz virada, agora é da paz...", diz Nogueira. O homem em questão era um criminoso de pequenos delitos, que Nogueira suspeita estar envolvido no tráfico. "A relação polícia-comunidade precisa de ser harmoniosa. Mas a gente ainda se depara com resquícios do passado, tanto da polícia como da comunidade", alerta. Recentemente, um caso mostrou como alguns vícios contaminaram a UPP: um soldado foi preso ao tentar assaltar uma caixa multibanco.
Com vista para IpanemaO morro do Cantagalo-Pavão/Pavãozinho é uma das 900 favelas do Rio. Fica na zona sul, a mais rica e turística da cidade, estende-se de Ipanema a Copacabana, mas é um "bairro de lata", com esgotos a céu aberto, casas precárias e fios de electricidade emaranhados, descarnados e perigosos. Tem, no entanto, uma vista deslumbrante sobre a praia da "coisa mais linda" que António Carlos Jobim já viu passar.O inferno está bem à vista. O Cantagalo pode estar pacificado, mas não é um paraíso.
São quilómetros de labirintos estreitos, onde, por vezes, nem chega a luz do sol. São centenas de barracas construídas em inclinação, numa base de terra e cimento. Têm portas de tamanho de criança, mas vivem famílias lá dentro, em espaços reduzidos e esconsos. As portas estão abertas e permitem ver o que lá se passa; muitas casas têm jovens adolescentes a tratar de filhos bebés e a ver qualquer coisa na televisão.
Outras, têm idosos demasiado fracos para saírem de casa.Cada esquina, cada beco, cada barraca mal dimensionada é uma história de miséria. Como a de uma criança de cinco anos que morreu com um tumor na cabeça porque não foi tratada a tempo. Os pais moram no mesmo barraco inclinado ao qual só conseguem aceder por uma escada. Ele está desempregado, ela também, o outro filho, Nathan, brinca nos degraus. Tem uma inflamação com mau aspecto nas costas, os pais prometem levá-lo ao médico.
O capitão diz para o irem inscrever na escolinha de futebol que a UPP criou. Os pais voltam a dizer que sim, que o levarão à hora marcada.A polícia parece perder-se no labirinto, e nem Nogueira se aventura na favela sem uma escolta armada de quatro soldados. "Nenhum policial anda aqui sozinho", justifica. Durante uma visita, um dos PM que acompanham o jornalista do PÚBLICO e o capitão Nogueira diz que por ali não há saída, que é preciso inverter a marcha. O caminho conduz a uma via de cerca de 30 centímetros de largura, por onde passam esgotos e que obriga a passar por baixo das fundações de uma casa sustentada por quatro vigas de betão armado.
De volta à rua, quem vai à frente vê alguém a correr e vai atrás dele. Nogueira explica que era alguém que estaria a vender algum entorpecente e dá ordem para os outros o perseguirem. Fica para trás, para perguntar a três crianças que estavam ali a jogar pipa se viram alguma coisa. "Acabámos de chegar", responde uma. Mais tarde, já na sede da UPP, os três homens que foram na perseguição dizem que conseguiram identificar a casa onde o possível traficante se escondeu, mas que uma senhora idosa não os deixou entrar.
O capitão ordena que regressem ao local e sejam mais convincentes.O tráfico de drogas no morro ainda existe, admite Nogueira. O que acabou foi o tráfico armado. "É o que nós chamamos de tráfico estica. O traficante anda com poucas quantidades, vende e, depois, vai buscar mais a um lugar distante. Ainda ontem, apreendemos 150 papelotes de cocaína [cada papelote tem entre cinco e dez gramas].
Aqui, enquanto existir, nós vamos reprimindo", garante. Durante a visita ao morro, o capitão irá dar ordem para revistar um adolescente que estava a jogar matraquilhos num bar. "Aqui era um ponto de venda", justifica, apontando para uma escadaria cujo acesso está agora vedado por uma grade. Do Nordeste para a favelaA história do Cantagalo é comum às outras favelas cariocas. Pessoas que não tinham dinheiro para comprar casa refugiavam-se aí, em barracas. Mais, o êxodo das zonas rurais para as cidades criou um problema adicional de habitação, e o governo criou alojamentos temporários que se foram tornando definitivos. Foi assim que Luiz do Nascimento, "Bezerra", chegou ao Rio de Janeiro.
No Ceará, Nordeste, não encontrava trabalho e foi para o Rio trabalhar na empresa de transportes que empregava o irmão.Começou por morar na Rocinha, uma das maiores favelas, mas, pouco depois, mudou-se para o Cantagalo, onde mora há 42 anos. "A vida era normal, não havia tráfico e a polícia quase não vinha. À noite, quase só se viam cachorros e um guarda-nocturno", recorda Bezerra, um motorista de autocarro reformado que é o presidente da associação de moradores do morro.Depois, vieram o tráfico e a violência. Desde os anos 80, confirma Bezerra. Com a proximidade de Ipanema e de Copacabana, a procura estava ao pé da oferta. Cresceram os lucros - as últimas estimativas antes da ocupação pelas UPP eram de receitas mensais a rondar os 1,2 milhões de euros - e aumentaram as armas nas mãos dos traficantes. Na mesma proporção cresceu a influência e o domínio sobre a população. "As favelas precisavam de tudo e, como o governo não dava nada, eles ganhavam muito dinheiro e davam assistência à comunidade. Eles é que davam ordens, faziam a lei. Eles é que eram a polícia", conta Bezerra. Quem controlava era o Comando Vermelho, na altura, uma das mais poderosas facções criminosas do Rio de Janeiro.As críticasUma sondagem publicada pelo "Globo" diz que 93 por cento das pessoas que vivem nas comunidades pacificadas concordam com as UPP. Não se discute a sua utilidade, mas as críticas vão para o oportunismo da iniciativa, implantada maioritariamente em favelas da zona sul, as zonas mais ricas, negligenciando-se outras zonas. "Estudos mostram que há regiões mais problemáticas e que precisam de mais segurança. As comunidades do subúrbio, da região central do Rio e do entorno da Tijuca [na zona norte] são exemplos", considera a socióloga Alba Zaluar.José Mariano Beltrame, secretário de Segurança do Rio de Janeiro, garante, no entanto, que algumas favelas na zona norte irão receber UPP. Ainda segundo Beltrame, até ao final de 2010, estarão em funcionamento 15 UPP para servir 59 comunidades, para um total de 120 mil pessoas.
A melhor defesa para este projecto é a diminuição do número de homicídios e de todos os outros crimes associados ao tráfico.Bezerra agora até já tem dinheiro para comprar casa noutro sítio, mas nunca irá sair do Cantagalo, porque "conhece todo o mundo", especialmente com as UPP, que considera a solução. "O pessoal tomou-lhes raiva, porque a polícia vinha e massacrava as pessoas", admite. Como acredita nas boas intenções da polícia, também está crente na redenção de alguns traficantes da comunidade, que ele gosta de chamar de "família".
"Tinha muita gente dependente dessa renda e claro que houve gente que ficou passando necessidade. Se conhecer bem as pessoas, elas não são ruins, aquilo virou um modo de viver. Tem muitos que saíram e que se tornaram gente boa, outros são ruins e não tem jeito mesmo."

Nenhum comentário:

Postar um comentário