ARMAZÉM DO CAFÉ




Enviado por Lydia Medeiros -

As histórias da família Modiano, narradas por um de seus filhos, Marco Modiano, poderiam bem render contos das mil e uma noites. Seu tataravô, por exemplo, um espanhol, era amigo do sultão da Turquia, que cedeu a ele a exploração das docas de Smir. Passou à posteridade no clã como "flanelinha de cais do porto". Mas o sangue de negociante o levou além da cobrança de pedágio dos navios atracados: abriu um entreposto para receber as mercadorias. Deu certo. O filho do "flanelinha", bisavô de Modiano, nunca precisou trabalhar.

O Modiano do século XXI, hoje com 60 anos, trabalhou bastante até chegar às oito lojas do Armazém do Café espalhadas pelo Rio. E desde cedo. Filho de pai espanhol - um engenheiro têxtil que não herdou a veia de comerciante -, aos 13 anos o garoto catalão chega ao Brasil com a mãe, italiana. Não demorou muito para o menino se integrar perfeitamente à rotina carioca de escola (francesa), futebol e praia, em Copacabana. O avô, porém, achou que a vida estava mansa demais. Reuniu-se o conselho familiar para decidir o que fazer. A praia foi trocada pelo escritório do grupo Ouro Fino, do tio, até os anos 70 o maior exportador de café do país.
- Aprendi o beabá do café. Foi "passionante" - conta.


Modiano lembra que recebia 45 cruzeiros mensais, como estagiário. O classificador-chefe de café, 950.
- Aquela era minha meta - lembra.
Por volta dos 16 anos, num julho que, imaginava ele, teria férias, foi enviado pela família ao interior do Paraná, onde a empresa comprava os grãos. O que se anunciava como castigo virou uma passagem pelo paraíso. No Rio, a vida era mais vigiada, não podia dirigir. No meio do mato, a liberdade era total. E o sucesso com as meninas também.

- Era um cenário de faroeste; gente a cavalo, com rifles enormes. E o escritório da Ouro Fino parecia a ONU, de tantos estrangeiros. Meu tio dava emprego para todo mundo. E eu era a novidade da cidade.
Mas havia um vestibular a fazer e a escolha foi o curso de economia, na PUC. O país estava sob uma ditadura militar, e o Rio vivia a agitação estudantil que marcou a época:
- Eu era comunista em casa e burguês na faculdade.

Numa das inúmeras passeatas estudantis do final dos anos 60, a namorada de Modiano terminou presa. O rapaz achou que deveria fazer alguma coisa. Acionou o tio-empresário, que tinha contatos com as autoridades. Logo depois, Modiano entrava num carro com oficiais estrelados, rumo à cadeia. Ao chegar, achou que seria tratado pela moça como herói. Estava errado. Ouviu uma estrondosa vaia e, claro, perdeu a namorada.

Modiano confessa que não era exatamente um acadêmico. Gostava de história, geografia e matemática financeira. Nas outras matérias, estudava o suficiente para passar:
- Mas eu queria ganhar dinheiro.
No início dos anos 70, o café voltaria a ter papel importante no rumo da vida de Modiano. Deveria fazer um trabalho sobre o assunto para uma das disciplinas da faculdade. Teve sucesso. Ganhou uma bolsa de estudos de seis meses no Ibmec. Logo depois, foi para a Bolsa de Valores. O salário, quase aqueles 950 cruzeiros que o classificador-chefe da Ouro Fino recebia. Da Bolsa, fez carreira em alguns bancos de investimento e sempre lidou com clientes do ramo do café. Em 1983, montou uma consultoria, com dois sócios, levando a clientela do banco.
Modiano teve altos e baixos na vida financeira, seguindo os humores do mercado. Até que cansou da gangorra. Lembrou de um verso do chansonier francês Charles Aznavour: "Il faut savoir quitter la table" - é preciso saber deixar a mesa.

- Eu não queria ser o mais rico do cemitério - diz.
Pegou a família (mulher de duas filhas pequenas) e foi para o Canadá. Durou pouco. O estranho sotaque francês de Montreal (para quem foi educado no idioma de Balzac) e o clima gélido pesaram mais do que a oferta de gerenciar, com direito a cotas, hotéis da rede Holiday Inn. Voltaram.

Em viagens à Europa, Modiano sempre observava com olhar mais agudo do que o do turista as casas de café. Não apenas os tradicionais cafés europeus, mas lugares onde a bebida café era a atração principal. Até que, no governo Fernando Collor, aconteceu a desregulamentação do mercado cafeeiro. Ou seja, o café deixou de ter preço tabelado e o país, maior produtor mundial, poderia ter acesso aos melhores grãos, que eram apenas exportados.

- A porta abriu. Fui às vestais do negócio e me chamaram de louco. Disseram que ninguém tomava café no Brasil e que eu estava fadado ao fracasso. Mas eu tinha a cabeça na Europa e resolvi fazer uma "viagem de japonês", exploratória. Passei por Espanha, França e Itália. E decidi: vou fazer uma casa temática de café.


O capuccino do Armazém

A primeira premissa para o negócio foi decidir torrar o café que seria vendido, para ter em mãos o controle de qualidade. Não foi fácil abrir a primeira loja, na Rua Maria Quitéria, 77, na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, em 7 de julho de 1997 - o número 7 se repetiria ainda em outros endereços da marca, como um amuleto. Foram quatro meses de obras que Modiano chama de via crucis - repetida depois nas outras sete lojas, em Ipanema, Leblon, Centro e Barra. Todas têm decoração semelhante: painéis que ocupam paredes inteiras, pintados pelo artista Marcos Vasconcelos, que retratam fazendas de café, e artefatos de antigas empresas do ramo. Na loja da Maria Quitéria está a máquina de torra artesanal que ele mesmo operou, no interior do Paraná, presente do primo Eduardo Modiano, ex-presidente do Bndes.
- O negócio foi um sucesso. Primeiro, pela novidade de poder comprar café em grão de ótima qualidade. E também por ser um lugar para o público feminino. Antes, café era coisa de homem, no balcão.

Nas lojas há ainda os apetrechos do mundo do café - cafeteiras, garrafas e jarras térmicas, máquinas de expresso, canecas, louças, charutos e cigarrilhas cubanas. Modiano vende apenas grãos brasileiros, apesar das facilidades da globalização. Diz que agora pode pôr em prática seu "lado esquerdista", apagado na juventude.

- Sou um xenófobo em café. O Brasil tem a maior produção mundial, em qualidade e quantidade. E é o segundo maior consumidor, depois dos estados Unidos. Não passa pela cabeça de um francês comprar vinho de outra nacionalidade. E café é um vinho sem álcool - explica.
O empresário não teme a concorrência da rede americana Starbucks, prestes a abrir uma filial no shopping Leblon. Na semana passada, ele disse à coluna Gente Boa, de Joaquim Ferreira dos Santos, no GLOBO, que vender café de procedência estrangeira no país era um crime de lesa-pátria, mas que a rede teria a vantagem de difundir o hábito da bebida.

No Armazém, são oito os tipos de café, que podem ser vendidos em grão ou moído, com destaque para o Frevo, orgânico, de Pernambuco - o mais caro: R$ 3,90 a xícara. Ou o Mambo, um café "lavado" - suave - do Sul de Minas, a R$ 3 a xícara. De cada loja, saem em torno de 500 xícaras por dia. Das oito, até 37 mil sacas de café por mês.

O dono percorre diariamente as oito unidades, comanda a torra do café, hoje feita por duas máquinas na loja da Barra. Toma até oito xícaras por dia - segundo ele, a dose "permitida por lei". Carrega dois celulares e pára tudo quando um deles começa a tocar a "Marseillaise", o hino francês: é a mulher quem está chamando.


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