PRAIA DE IPANEMA


Pelé: a fábula da formiga em Ipanema

Barraqueiro com ensino superior aprendeu a viver da praia no inverno





Robenildo Quintino Alves, o Pelé, barraqueiro em Ipanema, professor de vôlei, ator ocasional e poeta
Foto: Carlos Ivan / O Globo

Robenildo Quintino Alves, o Pelé, barraqueiro em Ipanema, professor de vôlei, ator ocasional e poetaCARLOS IVAN / O GLOBO
RIO - Está escuro quando Robenildo Quintino Alves chega ao calçadão de Ipanema, às 5h50m de uma sexta-feira. Ele anda dois quarteirões até a Cruzada São Sebastião, no Jardim de Alah, e entra num beco do conjunto habitacional. O ambiente é deserto e meio sinistro. O térreo dos edifícios funciona como depósito para dezenas de carrinhos amontoados, com material de barraqueiros da praia. O equipamento de Robenildo fica numa bicicleta daquelas de entregar mercadoria. Ele a retira de lá e pedala de volta à praia, enquanto começa a raiar um dia de sol fraco, típico do inverno. A maioria dos barraqueiros de Ipanema não dá as caras nessas condições. Não vale a pena. Mas Robenildo, o Pelé, é como a formiga trabalhadora da fábula, adaptada para as areias. Em 35 anos de batente, ele diversificou seus negócios e virou um empreendedor no mercado informal da orla. Formou-se em Educação Física, montou escolinha de vôlei, criou base de treinos para atletas estrangeiros e aprendeu a viver da praia mesmo quando a temperatura está longe dos 40 graus. O pernambucano radicado no Rio, de 45 anos, inventou ainda um programa de fidelização para sua barraca e recebeu, diz ele, dez mil cadastros. Hoje, ali na altura da Rua Garcia D’Ávila, o rei é o Pelé
Pode perguntar pela vizinhança espremida entre a Lagoa Rodrigo de Freitas e o mar. Se você quiser saber do Pelé, ninguém vai falar sobre o maior jogador de futebol da História. Do atendente da lanchonete à patricinha, todos vão dar as coordenadas das redes de vôlei desse xará do ex-craque santista, que, muito bem relacionado, já até apertou a mão de Bill Clinton, ex-presidente dos EUA. Ele está sempre lá. Os surfistas, dentro d’água, usam as redes de vôlei do Pelé como referência para se manter no mesmo lugar, em dias de correnteza forte. E, se a Garcia virou point na praia, foi, em parte, por causa da reunião de clientes em torno do sujeito, que tem carisma de gente simples e cabeça de homem de negócios.
Pelé já tinha visão empresarial muito antes de a série “Preamar”, em exibição no canal HBO, chegar com o personagem do banqueiro que, depois de falir, resolve fazer dinheiro tratando o mercado das areias como setor milionário. Ao longo dos anos, a estratégia de fidelizar a freguesia rendeu ao barraqueiro da Garcia uma pequena fortuna. Cada um dos dez mil clientes pagou R$ 10 para se cadastrar. Ele não está nada rico, mas se estabeleceu, investindo em seu ganha-pão.
— As pessoas têm preconceito com o mercado informal, não imaginam que um barraqueiro possa ter diploma. Mas o comércio na praia é um negócio. Precisa de seriedade — diz o comerciante, depois de entregar um cartão de visitas de plástico, com a foto dele e a frase “Tem coisas que só o Pelé faz por você”. — Nunca gostei de barraqueiro disputando cliente na descida da praia. Não gosto de gritar. Por isso criei a carteirinha, em 2008. Desse jeito, fico tranquilo e as pessoas recebem um tratamento de mais qualidade.
Pai e irmãos mortos aos 43
Hoje, Pelé é homem feito. Tem 45 anos, mas o corpo sarado e o sorriso fácil tiram dele pelo menos uma década. O nordestino chegou ao Rio com 7 anos. O pai era compositor gráfico em Recife e seu mudou com a família para São João do Meriti, na Baixada Fluminense. Na primeira vez em que Pelé pisou na Praia de Ipanema, estava com um isopor a tiracolo. Ele e o irmão, dois anos mais velho, ajudavam o pai no trabalho de ambulante. Iam e voltavam do Arpoador ao Leblon várias vezes num dia, até fixar ponto na Garcia. O barraqueiro tinha 14 anos quando o chefe da família, morreu, de enfisema pulmonar e cirrose. Bebia e fumava muito. Começou aí uma espécie de maldição na família Alves. Décadas mais tarde, o irmão faleceu, também aos 43. E, este ano, foi-se a irmã, com a mesma idade, no mesmo dia 27 de fevereiro que levou o pai, em 1983.
— Quando conto essa história, todo mundo pergunta minha idade. Mas passei da linha do perigo. Sou atleta, tenho vida regrada. Acordo cedo e faço esporte. Meu pai e meus irmãos bebiam muito. Tinham a saúde prejudicada — conta Pelé, que já foi casado, tem uma filha de 19 anos estudando para passar no Enem e uma irmã por parte de pai (a mãe morreu aos 59, após um AVC).
Depois de perder o pai, Pelé e o irmão, ambos adolescentes, assumiram os negócios, que consistiam numa barraquinha velha com um isopor. Nos anos 80, diz ele, ninguém tinha permissão para vender bebida na praia. O rapa chegava e era um “Deus nos acuda”. O garoto enterrava a mercadoria na areia, os clientes colocavam uma toalha verde por cima e ficavam lá jogando baralho, para disfarçar. Mesmo assim, eles perderam muita mercadoria, e tiveram que correr atrás.
— Ele era um projeto de gente quando o conheci. Mas sempre muito dedicado e educado. Conseguiu se criar na vida sofrida de barraqueiro — conta Severino Faustino, de 64 anos, 40 deles vendendo bebida na praia, ali perto da Garcia.
Pelé já tem licença para trabalhar há anos. Ainda vende bebida, mas, para não depender de São Pedro, expandiu o raio de ação. É professor de vôlei (sua escolinha tem cerca de 50 alunos), personal trainer, e monta redes para escolinhas de beach tênis e para a turma que pratica esportes no fim de semana. Ao todo, cuida de oito redes. A maioria dos barraqueiros só trabalha nos fins de semana de sol, ou no verão, quando um vendedor chega a faturar R$ 7 mil num mês. Mas quase todos têm outros empregos. São marceneiros, porteiros etc. Gente que encara a orla como uma forma de aumentar a renda. Pelé é um dos poucos que faz disso um ofício, com horários e regras.
— Venho mesmo quando estou doente. Não tem essa. É o meu negócio — diz ele, que chegou a morar num apartamento alugado em Ipanema, mas, com a explosão imobiliária do Rio, mudou-se para a Avenida Niemeyer, perto do Vidigal.
Esta vida nunca foi o sonho dele. Pelé queria era ser jogador de futebol. Era bom de bola e, por isso, ganhou o apelido de um cliente. O contato com o vôlei aconteceu nos anos 90, quando a dupla de praia Adriana e Mônica, prata nas Olimpíadas de Atlanta, em 1996, começou a treinar no território do Pelé, e ele ficou de boleiro. Nessa época, o pernambucano carioca já estudava Educação Física, à noite, na Universidade Salgado Oliveira, em São Gonçalo. Ele tinha bolsa de atleta, e chegou a ser campeão brasileiro universitário de atletismo, na prova dos 800 metros, em Fortaleza.
— O Pelé ficava grudado, de olhão arregalado, aprendendo. Ele junta humildade com vontade de crescer — descreve Marcos Freitas, na época treinador de Adriana e Mônica e, mais tarde, de Tande e Giovane.
— Ele estava sempre querendo aprender. Chegou a ser auxiliar nos treinos. E continuou evoluindo. O nome dele virou referência na Europa. Várias duplas da Suíça, da Holanda e de outros países vêm treinar na rede do Pelé durante o inverno europeu — conta o ex-craque Tande, hoje apresentador da TV Globo.
Não é raro ver atletas de cabelos louros e pele torrada de sol treinando na Garcia. No cartaz que já virou parte da paisagem do lugar, o barraqueiro aparece, com um sorriso maior que o rosto, entre duas louras holandesas muito mais altas do que ele (uma delas foi sua namorada enquanto esteve no Brasil).
Quando está tudo funcionando — os treinos com gringos, as aulas e a barraca de bebidas —, Pelé chega a ter cinco funcionários. Mas, no dia a dia de baixa temporada, sua única auxiliar é Aline Alencar, uma morena funkeira de olhos clarinhos, que mora na Rocinha. Tem 24 anos, um filho de 8, um dragão enorme tatuado nas costas e o nome do ex-namorado no antebraço direito. Há duas semanas, pôs um piercing na língua e virou alvo das brincadeiras de Pelé. Ela trabalha com o barraqueiro há quatro meses. Chega à praia às 6h20m, todos os dias.
— É difícil conseguir mão de obra. As pessoas não têm compromisso. Só querem tirar o salário. Não pensam em multiplicar. A Aline pega no pesado. Mas já tive que demitir funcionário um dia — conta o professor, que se inspira para ser gerente nos livros do bilionário Donald Trump e do psiquiatra Flávio Gikovate. — É complicado equilibrar a realidade de ser conhecido, chefe, e, ao mesmo tempo, ter um trabalho e uma origem humildes. Não tenho pedigree. Estou trabalhando a mente para seguir progredindo, sem medo de botar a cara, de me promover.
Enquanto conversa, Pelé não fica dois minutos sem acenar para alguém no calçadão. É figura conhecida. Já deu até autógrafo, na época em que estrelou o comercial de uma marca de refrigeradores, em 2002 (ainda sabe suas falas de cor). Saiu no jornal várias vezes devido à proeminência na praia e, também, quando, em 2001, subiu ao calçadão para entregar uma bola de vôlei a Bill Clinton, e cumprimentá-lo. Foi rápido, e ele não pôde gastar o inglês que aprendeu nas areias. É meio macarrônico, mas muito melhor que o de Joel Santana.
— O Pelé é um ótimo rapaz, inteligente. Só não gostei quando ele se meteu com política — ressalta Laura Freitas, cliente antiga na Garcia D’Ávila.
Em 2004, o comerciante se candidatou a vereador. Fez campanha só na praia mesmo, porque não podia deixar o navio afundar. Não foi eleito.
— Acho que ele ficou deslumbrado com a fama local. As pessoas adoram o Pelé, por ele ser gente boa e trabalhador. É um cara que mudou o destino dele. Nasceu muito pobre, mas evoluiu trabalhando — comenta o jornalista Lúcio de Castro, que cresceu indo à praia por ali.
Mais de 50 poesias escritas
Pelé também é poeta. Já escreveu mais de 50 poeminhas. “Amor quando escolhido”, por exemplo, termina assim: “Entre mortos e feridos/ Hoje eu amo/ Não escolhi/ Fui escolhido”. E “A moeda” começa com “Sou como uma moeda lançada à sorte/ Cara ou coroa nas mãos de quem aposte/ Ao vencedor o prêmio da vida/ Ao perdedor a chance da morte”. Mas, se quiser publicar os versos, o barraqueiro, só precisa tomar cuidado com a maneira como usa seu nome “artístico”.
— Um cliente meu, que conhece um advogado do Pelé (o jogador), disse que ele aconselhou a não usar o nome fora da praia, para não ter processo


WILLIAM HELAL FILHO

Nenhum comentário:

Postar um comentário